segunda-feira, 19 de março de 2012

In Memoriam



In Memoriam (a meu pai...)

Não ouso entrar na privacidade da morte mas nos jardins onde os seres adormecem imóveis e inabaláveis em sua leal imitação de estátuas. busco a fria linguagem das sombras para dizer a pedra onde os mortos amados permanecem, como se apenas dormissem num caixão o mesmo sono dos vivos.

Notícia brusca. como castanha explosiva, barroca, salgada  estoura nos prolongamentos membranares, contração, perda, pranto, tudo parece mistério, confusão: brasa liquida viva pinga da distância intransponível. O coração

é brando liquido que ferve em tudo o que neles amaremos para sempre e em tudo o que neles não voltaremos a refutar.

Sabemos que os mortos amados se convertem em ilhas, afastam-se, arrefecem extraordinariamente. Suas línguas são os lugares ermos, glaciais, onde talvez floresçam ainda margaridas em pútrida espuma verde.

Nos dias do amor concreto éreis criaturas como árvores, grossa seiva vermelha, vivas orquídeas, gerberas enraizadas. antúrios, lírios, crisântemos, tudo era dócil perseverança palpável. Na noite dos mortos amados que doem sois as palavras longas e lisas, silabas átonas que proliferam para se consumirem por entre coroas de palma, folhagem, rosas brancas, epitáfios, dedicatórias, saudade perpétua da longevidade do amor

 ..nada então permanece além do instante lacónico, ó cavalos de vento que se propaga

para acontecer na estupefação da sua semelhança com Deus.

Vossa pele cristalizou.  habitua-se aos longos luares arquivados, à cor fria do marfim. Há os tendões rígidos, metálicos, o abraço descontinuado, sem templos visitados ou versos; gargalos retorcidos de silêncio, e há as pegas do caixão onde jazeis convertidos na certidão única da eternidade. Vão os dedos e tocam-vos

 como se fosseis ainda sensíveis e aromáticos; olhos cravam-se em objetos de culto mistérico, dentes mordem os lábios à noite, escondem em vasos descartáveis de boca circular a vergonha velada do conforto de ainda se estar vivo, de se poder falar da tristeza nos velórios, beber café,  sentir quebranto, todo o ritual tem seus propósitos, seus gráficos, suas paisagens exteriores que avançam em direção ao infinito mutilado.

o que se instala é paralisia galopante, transforma a natureza,  torpor congela uma fragrância de cera amolecida; a flor-cadáver é a maior e a mais fétida flor do universo.

 Há que cobrir-vos o rosto, nosso rosto, afinal, lastimar a terra e seus despojos inelutáveis, olhar demoradamente para o céu. O que aparece na visão do firmamento não revela o lugar que apavora quando a vida parece necessária. Não é o sangue

gelado nas artérias,  a coisa triunfante dos mortos amados, mas a  jangada de minutos desiguais onde a vida se desprenderá de nós aos bocados atravessando

o lato sentido da impermanência.

Há em torno da vossa cabeça de mortos amados um velado diadema, pregas de amor esquecido nas pálpebras e a pontualidade do silêncio. é preciso

concertar os mortos. devolvê-los à dissolução do soluço , delicadamente vincar
um traço de esperança em pálida folha de papel, libertar
a saudade nos olhos de um retrato e transportar

os mortos amados ao eufemismo
do doce desenlace: sois gloriosamente além da morte porque já não tendes medo de morrer.

Vamos dizer que sois, na sujeição à vossa morte convicta, a cicatriz das estrelas, botão de rosa estendido na razão da verdade. Vamos dizer que sois
transfigurados nos ossos das grandes montanhas,

meus próprios ossos

caídos do céu.


Triturada na úlcera do que sempre será prematuro,  apenas vos cubro o rosto e me despeço

ó mortos amados.

Dou-vos a minha pequena mão de nascituro, corpo de letra invertida   
sigo-vos sem fala até à sepultura

como pequena folha ao vento.


© M.Dulce Guerreiro

in "Assombrosamente, os Bichos." / Distinguido na I  Edição do Prémio de Poesia Manuel Alegre.


Imagem: autor desconhecido. Identifique-se o autor, p.f. se por remoto acaso  passar por aqui...



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