segunda-feira, 19 de março de 2012

In Memoriam



In Memoriam (a meu pai...)

Não ouso entrar na privacidade da morte mas nos jardins onde os seres adormecem imóveis e inabaláveis em sua leal imitação de estátuas. busco a fria linguagem das sombras para dizer a pedra onde os mortos amados permanecem, como se apenas dormissem num caixão o mesmo sono dos vivos.

Notícia brusca. como castanha explosiva, barroca, salgada  estoura nos prolongamentos membranares, contração, perda, pranto, tudo parece mistério, confusão: brasa liquida viva pinga da distância intransponível. O coração

é brando liquido que ferve em tudo o que neles amaremos para sempre e em tudo o que neles não voltaremos a refutar.

Sabemos que os mortos amados se convertem em ilhas, afastam-se, arrefecem extraordinariamente. Suas línguas são os lugares ermos, glaciais, onde talvez floresçam ainda margaridas em pútrida espuma verde.

Nos dias do amor concreto éreis criaturas como árvores, grossa seiva vermelha, vivas orquídeas, gerberas enraizadas. antúrios, lírios, crisântemos, tudo era dócil perseverança palpável. Na noite dos mortos amados que doem sois as palavras longas e lisas, silabas átonas que proliferam para se consumirem por entre coroas de palma, folhagem, rosas brancas, epitáfios, dedicatórias, saudade perpétua da longevidade do amor

 ..nada então permanece além do instante lacónico, ó cavalos de vento que se propaga

para acontecer na estupefação da sua semelhança com Deus.

Vossa pele cristalizou.  habitua-se aos longos luares arquivados, à cor fria do marfim. Há os tendões rígidos, metálicos, o abraço descontinuado, sem templos visitados ou versos; gargalos retorcidos de silêncio, e há as pegas do caixão onde jazeis convertidos na certidão única da eternidade. Vão os dedos e tocam-vos

 como se fosseis ainda sensíveis e aromáticos; olhos cravam-se em objetos de culto mistérico, dentes mordem os lábios à noite, escondem em vasos descartáveis de boca circular a vergonha velada do conforto de ainda se estar vivo, de se poder falar da tristeza nos velórios, beber café,  sentir quebranto, todo o ritual tem seus propósitos, seus gráficos, suas paisagens exteriores que avançam em direção ao infinito mutilado.

o que se instala é paralisia galopante, transforma a natureza,  torpor congela uma fragrância de cera amolecida; a flor-cadáver é a maior e a mais fétida flor do universo.

 Há que cobrir-vos o rosto, nosso rosto, afinal, lastimar a terra e seus despojos inelutáveis, olhar demoradamente para o céu. O que aparece na visão do firmamento não revela o lugar que apavora quando a vida parece necessária. Não é o sangue

gelado nas artérias,  a coisa triunfante dos mortos amados, mas a  jangada de minutos desiguais onde a vida se desprenderá de nós aos bocados atravessando

o lato sentido da impermanência.

Há em torno da vossa cabeça de mortos amados um velado diadema, pregas de amor esquecido nas pálpebras e a pontualidade do silêncio. é preciso

concertar os mortos. devolvê-los à dissolução do soluço , delicadamente vincar
um traço de esperança em pálida folha de papel, libertar
a saudade nos olhos de um retrato e transportar

os mortos amados ao eufemismo
do doce desenlace: sois gloriosamente além da morte porque já não tendes medo de morrer.

Vamos dizer que sois, na sujeição à vossa morte convicta, a cicatriz das estrelas, botão de rosa estendido na razão da verdade. Vamos dizer que sois
transfigurados nos ossos das grandes montanhas,

meus próprios ossos

caídos do céu.


Triturada na úlcera do que sempre será prematuro,  apenas vos cubro o rosto e me despeço

ó mortos amados.

Dou-vos a minha pequena mão de nascituro, corpo de letra invertida   
sigo-vos sem fala até à sepultura

como pequena folha ao vento.


© M.Dulce Guerreiro

in "Assombrosamente, os Bichos." / Distinguido na I  Edição do Prémio de Poesia Manuel Alegre.


Imagem: autor desconhecido. Identifique-se o autor, p.f. se por remoto acaso  passar por aqui...



sábado, 10 de março de 2012

O Medo Não Me Faz Falta...


Coisas do medo...

Hoje estou para aqui virada. Poisei há pouco os olhos na página de uma revista antiga aberta em cima da minha escrivaninha e deparei-me com esta frase de Bertrand Russell : "perder o medo é o principio da sabedoria". Fiquei com vontade de vir para aqui dedicar mais alguns minutos da minha vida ao caso... Pensar nesta coisa, na qual normalmente não se pensa porque tem por si só a força de paralisar o pensamento. Não é possível pensar o medo, pintar o medo, representar o medo, dentro do medo. Pelo que sempre será difícil ver o medo de dentro para fora. Exprime-se só com exatidão na simbiose com o hospedeiro. Nós vemos. Porém, quando podemos ver, o medo já não é nosso. O que fica é a imagem do desamparo. 
Quem sabe o que é a sabedoria? Se há a eternidade por descobrir, a sabedoria é talvez apenas uma palavra e bastante ingénua. Uma designação simbólica do que gostaríamos que fosse .Afinal, querido Plano Infinitamente Curvo, quem nos garante que és infinitamente curvo, que de repente não decides tornar-te infinitamente plano? Alguém sabe onde pode levar o infinito? O que é a sabedoria? Ir à profundidade do ser como o campo que vibra na pulsação da semente? Descobrir quantas vezes passamos pelo mesmo lugar? Encontrar a visão além do tempo que a nossa mente infantil carrega como um fardo que prende os movimentos? Quando ocorreu a criação do quadro exposto o medo não era mais que fiapos de papel e memórias turvas de tempo despedaçado no chão das minhas janelas....


 To conquer fear is the beginning of wisdom.  Bertrand Russell



 The one permanent emotion of the inferior man is fear - fear of the unknown, the complex, the inexplicable.  What he wants above everything else is safety.  ~Henry Louis Mencken
A única emoção permanente do homem inferior é o medo. – medo do desconhecido, do complexo, do inexplicável.  A coisa pela qual o homem inferior mais se bate é a segurança. Henry Louis Mencken /Trad. MDG








Fear is the lengthened shadow of ignorance.  ~Arnold Glasow
O medo é uma longa sombra da ignorancia. Arnold Glasow



 Nothing in life is to be feared.  It is only to be understood.  ~Marie Curie
 Não há, na vida,coisas a temer. Há apenas coisas a entender. Marie Curie/ Trad. MDG



Who is more foolish, the child afraid of the dark or the man afraid of the light?  Maurice Freehill
Quem é mais patético? Uma criança com medo do escuro ou um adulto com medo da luz? Maurice Freehill/ Trad. MDG




There is much in the world to make us afraid.  There is much more in our faith to make us unafraid. Frederick W. Cropp
 Há muita coisa no mundo que nos mete medo. Mas há muito mais na fé de cada um de nós para que o medo se perca. Frederick W. Cropp/ Trad. MDG



segunda-feira, 5 de março de 2012

Resposta a José (nome fictício)


Problemas Encontrados na Rua...


Estudo de caso (Dilema Duplo)  Resposta a José (nome fictício)


Caro José, gostaria de poder ajudá-lo, mas bem sabe que ninguém pode decidir por si qual das mulheres que diz amar, ama realmente.


 É certo que o dilema reside justamente na sua convicção de amar as duas. 
“É possível que estar dividido seja para si a única maneira de estar inteiro”.  Mas, talvez devesse questionar-se sobre se realmente amará alguma delas. 


Na verdade, nada leva a crer que o conceito de monogamia existisse nas sociedades primitivas. Ao contrário, tudo indica que este conceito é uma mera questão cultural. A cultura da poligamia ainda hoje prevalece em alguns lugares do mundo, aparentemente sem conflitos entre os parceiros.


Mas, Rosana Braga, uma consultora especialista em relacionamentos, investigou exaustivamente sobre a sexualidade e a cultura nos haréns.  E obteve de um Skeik uma revelação interessante. Admitindo sentir um grande carinho por todas as suas mulheres, o Sheik confessou que o seu coração batia mais forte somente por uma delas.


Então, mesmo com a mente liberta dos preconceitos em que se pressupõe assentar a cultura monogâmica da actualidade, é caso para pensar se o coração não será naturalmente predisposto a essa qualidade de amor “exclusivo,” constante em todas expressões artísticas que dão testemunho da evolução das civilizações(?) 


Seja qual for a verdadeira natureza do coração humano, caro José,   na nossa cultura, o comportamento poligâmico vai contra as convenções sociais.  Os cânones estabelecidos apelam ao prazer sexual na exclusividade, o que pressupõe uma confiança mútua, que pode estabelecer cumplicidade entre um casal. Mas, se essa confiança  é atraiçoada,  o desapontamento  pode desencadear uma guerra em que, insultos, acusações, humilhação e abandono são os campos de batalha a enfrentar. 


A mentira e o sentimento de culpa também são causas de perturbação aguda, separam-nos do ser supostamente amado e de nós mesmos…. não é, pois, surpreendente que o José tenha caído nessa zona de conflito alarmante que a Psicologia designa por “dilema duplo”, ou seja, no que quer que o José faça, perderá alguma coisa. 


Porém, em qualquer peça de teatro, quando o conflito atinge o clímax, é sinal de que nos encontramos já muito perto da resolução. E parece que no teatro da vida real as coisas não se passam de maneira muito diferente. 


Talvez a diferença esteja apenas em que, numa peça de teatro existe um “timing” previsto para a dramatização, e, na vida real, o conflito pode arrastar-se enquanto o protagonista, neste caso o José, se puder manter à tona dele,  paralisado nas suas defesas diante da culpa e do medo de enfrentar as perdas.


Deixou claro que a timidez excessiva não lhe permitia viver as paixões adolescentes e admitiu que, depois de a ter superado, iniciou uma fase de conquistas e namoros aos quais nunca conseguiu ser fiel. 


O próprio José concluiu que esse padrão de comportamento parece manter-se… José, eu penso que a sedução pode ser uma componente forte na construção da autoestima.  Ocorre-me a possibilidade  de a inquietação do passado, com os seus registos de solidão, rejeição, abandono, desamparo e fragilidade do ego, se constituir ainda em ameaça à sua autoestima..  


O poder de sedução é como que uma casa onde se entra com segurança, mas não deve esquecer que, mesmo assim, há sempre a possibilidade de  vir a encontrar um esqueleto no armário. O esqueleto pode ser a fuga  ao facto de usar compulsivamente a sua sedução como proteção inconsciente da autoestima. 


Quantas mais mulheres você seduzir, maior será o reforço de proteção...A ser assim,   há, de fato, a possibilidade do amor que julga sentir por essas duas mulheres não ser senão um  ardil para encapsular o trauma.  


Se for o caso, o mais provável é que, ao descartar-se de uma das suas namoradas, perca também o interesse pela outra….a menos que uma terceira venha imediatamente a palco para a compensação do elenco.



Desejo-lhe um desenlace com o mínimo de mortos e feridos sobre o palco e um aplauso à sua coragem para informar todos os protagonistas sobre os seus verdadeiros papeis no enredo…



terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Como um fruto que paira...


                        
    Um fruto, se for amor, pode ser cegueira ou vinho  e doer amável ou brutalmente... 


....como qualquer coisa cristalizada na boca, emudece na língua; pressente-se no ar como um fruto que paira e que mastigo sem que me reconheça emocionada na sua saliva doce. Porque não te sinto, se és feito de tendões e músculos e vertebralmente constituído, como eu?  Porque pairas na emergência perplexa do meu movimento de cria, porque não vens em forte odor corpóreo? Inutilmente vens como poeira espessa ao meu instante de tendões e músculos e sangue fluido nas veias. Testa, nariz, Fevereiro que assenta em ti como de novo o luar, o meio do meu coração que se dissolve como chuva temporã na janela imaginária dos teus quadris (...)


Texto: Maria Dulce Guerreiro
in "Assombrosamente, os Bichos" / Colecção de textos poéticos distinguidos na I Edição do Prémio de Poesia Manuel Alegre

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

“Tu n’es plus un sauvage, même si tu n’es pas encore un homme…”



François Truffaut - vale a pena lembrar...

Anunciados ontem,  no Google, a data de nascimento de Truffaut e os oitenta anos passados sobre ela, veio-me à lembrança o filme  "O Quarto Verde", que vi,  há algumas décadas, no Quateto, arrastada no entusiasmo  de alguns colegas de faculdade surpreendentemente bem instruídos  nas lides cinematográficas, especialmente no tocante ao cinema francês. Não me lembrando exactamente  da trama, lembro, porém, que esta "peça" me impressionou e que me deixou desde logo fã do cineasta. Daí para a frente,  toda a sua obra marcaria fortemente a minha juventude. 








De toda a sua cinematografia, L'ENFANT SAUVAGE foi o filme que me seguiu de perto até ao presente, o que me deixou na memória registos indeléveis  de pormenores.



Inspirado num “fait divers”.  Trata-se dum filme emblemático, bem ao estilo do universo de Truffaut. 








                 A descrição dum processo educativo invulgar. Um projecto bastante intimista do cineasta.
1798
Nu, arisco e sem saber falar,  um jovem é encontrado assim na floresta, pelos residentes da aldeia.
É recolhido pelo Dr. Itard, que lhe atribui o nome de Victor,  consagrando-se inteiramente à sua educação. 
Sociabilizar o jovem revela-se uma missão árdua e delicada, marcada por muitos momentos de satisfação...
 e por muitos outros de frustração....

Construída em sucessão de capítulos (“Victor na floresta”, “Victor no instituto de surdos mudos”) a narrativa é ritmada pela voz off do médico a anotar as suas reflexões e conclusões, coisa muito do agrado dos doutos mas que se revela pesada em fracasso na relação com a criança.
O Selvagem de Aveyron é objeto de mal-entendidos, como não podia deixar de sê-lo uma criança criada por sua conta e risco na floresta hostil, posteriormente recolhida por adultos que fazem dele praticamente um fenómeno de feira. Pensou-se que teria sido abandonado por ser idiota, mas depressa vem a servir de protótipo da criança mentalmente retardada justamente devido ao seu abandono. No parecer de alguns,  Victor é um incompreendido, cujas falhas e desvios são agravados pela carência afetiva e estigmatizados pelo olhar alheio.
Esta inversão da causalidade é revelada na primeira meia hora do filme, mostrando desde logo o Dr. Itard na pele do investigador perspicaz, que não tarda em descobrir o mistério deste “animal humano” a quem passados uns meses ele poderá dizer: “Mesmo não sendo ainda propriamente um homem, já não és um selvagem.”

A obra exibe uma lenta mas imparável metamorfose. Truffaut é excelente a mostrar a relação, pedagógica, que rapidamente se tornará também afectiva, desenvolvida entre Victor e o seu educador, através dum jogo de coerção, imitação e interacção no âmago do processo de aprendizagem. A cena em que Vítor se revolta, quando é punido injustamente, é também, aqui,  emblemática.; a “ordem moral”, estando interiorizada pela criança, apontaria para que esta é uma ordem intrínseca ao ser humano.

No plano da forma, as imagens a preto e branco, bem “cativadas” por Néstor Almendros,  contribuem ainda mais para a sobriedade da obra. Quando Vítor é considerado como um animal selvagem que deve ser capturado ainda que para tal tenha que se usar a força,  a fulgurante sequência quase muda de Néstor Almendros, sacudida  de violência impressionante, é inaudita.


O próprio Truffaut encarna  a personagem do Dr  Itard, criando assim um “à beira do abismo” fascinante entre o papel de educador  e o de se dirigir a si mesmo como actor. 
Jean-Pierre Cargol assume com distinção a personagem de "l´enfant sauvage". 

François Truffaut...vale a pena lembrar!

domingo, 29 de janeiro de 2012

Tempus Fugit (...)


" (...) ressuscitar, se faz história: criar, se faz poesia." Victor Hugo

Desde a não existência do tempo, até ao tempo absoluto.

"O que é o tempo? Eu sei o que é o tempo, se alguém me perguntar, não consigo explicar."  Sto Agostinho 

 Texto: Maria Dulce Guerreiro
in "Hortelã Mastigada no Frio" / Colecção de textos poéticos


O tempo voa sempre para o presente. 
Imagem: Aiming for kafka

...para esta coisa de estar aqui, agora. Se fosse descrever tudo o que vejo e sinto, cada detalhe de cada coisa ao mesmo tempo, condensaria a divina palavra no  gargalo estreito da experiência humana.  No  presente,  passado e futuro, tocaria o mundo na afinação do encontro entre o mundo visto por mim há um instante, o passado que inspirou a sua existência e o seu futuro no esquecimento 

do meu olhar.


Eis o presente.
Imagem: Marta Cobos


Diante dos espelhos coloco a face e a espinal medula. Sou infinita no reflexo do reflexo do reflexo, interminável neste presente continuado, na cruel ousadia dos  espelhos que  me devolvem ao lugar intangível de mim, esse mistério onde todos os outros habitam. Múltipla e uma só no presente desta condição, renascimento entre passado e  futuro, entre duas belas mãos intocáveis, entre duas  ideias voláteis, uma ideia veio expressamente para jantar e partir, a outra veio procurar o amor na   imensidão  quartziana do crânio.

Há no ar uma espécie de rumor  que muda  a sua rota com o vento e eleva o batimento dos pulsos  que hasteiam a hora das aves.. É talvez também  criação do tempo que olha para o céu  com as veias corredias no sistema vascular dos astros. A luz que chega da lua e vem para mostrar  a gravidade da terra, viaja pelo espaço, antiga e cataclísmica, não saberemos se é  duração, uma qualquer oportunidade deve ser agarrada como agarraríamos
a eternidade.



Imagen: Zhangpeng


Tudo parece acontecer tão depressa, o terror, a surpresa, o amor, um dedo que não se mexe para tocar nos cabelos, a mão que se suspende sobre a individualização da idade, o vinho que apetece porque alegra ou dói, o cotovelo que roça o ombro na passagem para sentir a corporalidade da pele, as pernas que seguem em frente, os pés que dançam rumo ao futuro, ou param diante  do passado







Imagem: Dariusz Climczac (Journey)


O mundo em nano segundos
e ainda as lembranças que fazem parecer o passado terrivelmente vivo, terrivelmente presente, o tempo não se reconhece no seu lugar e ausenta-se
da casa 
deixando a criatura humana a vagar no  fio da incerteza das suas memórias.





O obturador,  abre, fecha, fica a tristeza registada na eternidade de um pensamento condensado
sem qualquer utilidade senão a de  brutalmente ter  aniquilado milhares de possibilidades.

Mas se um instante cessa,  outro começa. Na impercetível suspensão.entre uma e outra coisa   somos então a imagem,   sem respiração, parada. Quando as criaturas saem do  torpor das suas inquietantes  dimensões, as cinzas do passado voam para o infinito espaço da atenção em movimento, tudo torna à realidade para que o presente volte à casa com sua esperança de amar os dias em que tudo se mistifica e funde: alegria e dor, amor e ódio, coragem e cobardia, aves que trazem dos campos a liturgia da tarde e cães que atacam os caminhantes com seu uivo de medo ou nostalgia . 

Passam horas e horas pelos minúsculos cristais de quartzo, como diminutos grãos de areia horas vibram nos pulsos, desta diminuta vibração se fazem cicatrizes pendulares, dias
completos. 
Cada passagem do pêndulo, cada estreito caminho de areia, marcam uma noticia breve ou insuportavelmente longa. O coração vem com seus batimentos regulares representar o mundo que habita para além do relógio, esse mundo que gira à velocidade do homem livre  ou do homem fechado na sua amargura. Gota a gota, um só instante basta, para largar da mão a sanidade e enlouquecer.





Imagem: Nate Williams


Está sempre na hora de qualquer coisa. De acordar, de levantar, de almoçar, de andar, de parar,de  beijar o marido, a mulher, de ter desejo, cansaço. Se uns observam acordados, outros sonham.  Quando está na hora de sonhar, ninguém o diz , tudo é silêncio, a casa não saberia dizer que horas são sequer por um ostensivo sinal ou pela simples habilidade de um relógio de incenso




Imagem: Juan Miró
Nas torres das igrejas o tempo passa com os habitantes da cidade pequena e a temperatura do ar sem que ninguém dê pelos mistérios da grande solidão. A terra gira e a sua rotação completa leva 24 horas, percebemos que gira pela posição do sol e das estrelas, o mundo divide-se em fusos horários percorrendo longas distâncias para que a mente seja capaz de imaginar  no breu da sua noite o sol a levantar-se do outro lado.

Se o meio dia desliza  pelas planícies, pelos vales  e montanhas,  a terra enfrenta o sol de lés a lés, com a claridade que proíbe o medo. Onde quer que se encontre alguma sombra, aí, estará  também a luz. e o que nela se organiza. As semanas, os meses, os anos, os séculos, os milénios,  os dias tomam para si nomes de deuses, anjos e astros, em sete dias se criou o mundo, em menos se criaram os nomes das coisas, as quatro estações do ano, as quatro fases da lua, a costela de Adão, o seio de Eva, a maçã, o unicórnio.

Da  condição humana sabe-se que tem seu calendário de palavras, sonho e vigília, dúvidas, fé,  e a doce fantasia do amor. 

sábado, 28 de janeiro de 2012

Criaturas Míticas- Fénix


O Museu Americano de História Natural, organizou, há alguns anos,  uma exposição inusitada para um dos museus mais proeminentes do mundo. O tema  foram os dragões e outras criaturas do universo fantástico: Criaturas MíticasO seu objectivo não foi demonstrar que essas criaturas são, afinal, reais, mas chamar a atenção para a forma como os mitos e os arquétipos passaram a conviver connosco, para podermos dar sentido às coisas que não entendemos.

“É uma coisa que atravessa o tempo e as culturas. Estas criaturas nascem da imaginação dos povos como forma de explicar e dar sentido aos fenómenos e às maravilhas do universo natural, que assombram, parecem estranhas e confusas e são muitas vezes difíceis de interpretar ou explicar.”- Ellen Futter, Presidente do Museu.


A China antiga reverenciava quatro animais mágicos, benevolentes e espirituais: o Dragão, a Tartaruga, o Unicórnio e a Fénix.
Bestiário de Aberdeen. Manuscrito iluminado.
Fénix
É uma montada dos Imortais.

O mito da  Fénix, (do grego phoenix), surge na mitologia greco-romana e integra os mitos da antiguidade clássica.
 Provavelmente inspirada no pássaro bennu, cegonha ou garça divina da antiga mitologia egípcia, aparece em muitos textos egípcios  como um dos símbolos sagrados de Heliópolis,  Iunu para os egípcios e On para os gregos, mas por ambos os povos uma  cidade considerada o  centro simbólico da Terra.


Uma certa visão da  origem da vida defendia  que a essência vital, ( Hiquê) vinha de uma terra mágica e longinqua, conhecida como Ilha de Fogo. Este era um lugar de luz duradoura, onde os deuses nasciam ou reviviam para além do tempo, sendo daí enviados ao nosso mundo. A Fênix era o principal mensageiro dessa terra só acessível aos deuses,   trazendo desse  mundo onde a eternidade se manifesta, a  mensagem da luz e da vida,  perdida do homem comum, oculta  no desamparo das sombras primordiais. Ao terminar o seu vôo, a Fénix desceu em Heliópolis,  onde anunciou a nova era.




Bennu é "Aquele que veio a ser por si mesmo". "O Ascendente", "O Senhor dos Jubileus  Reais".
No livro dos Mortos,  o bennu diz: Eu sou o pássaro bennu, o coração-alma de Ra, o guia dos deuses para o Tuat,"
A ave aparece também associada  ao sol Nascente, ao ritmo quotidiano do sol  e ao Deus egípcio Ra, o deus do sol,  sendo considerada como a sua alma. e um dos símbolos sagrados das revoluções solares, intimamente ligadas aos grandes processos evolutivos da humanidade.






Surge igualmente como manifestação do deus Osiris  ressuscitado
Segundo relatos de Heródoto e Plutarco, trata-se de uma ave magnífica, de incomparável esplendor, com uma plumagem escarlate e dourada, um canto sobrenatural e uma longevidade extraordinária, possuindo a faculdade de renascer das suas cinzas, depois de se consumir pelo fogo num processo de auto combustão.  





O seu aspecto simbólico manifesta-se na sua associação à emergência cíclica da morte e da ressurreição, o ciclo que encerra em si o milagre da imortalidade, o triunfo da vida sobre a morte.
Por representar criação e renovação,  acompanha o calendário egípcio, sendo o Templo de Bennu  bastante conhecido pelos  muitos instrumentos usados para medir o registar o tempo. 


A  designação Fénix passou posteriormente a ser usada como tradução para  nomes de aves lendárias semelhantes, comuns noutras culturas. É a Fenghuang chinesa, a Hou-Ou japonesa,   o Pássaro de Fogo das lendas russas ou a Asimurgh da mitologia persa e sufi. Os árabes também a mencionavam na figura da ave cinomolgus, que construia o seu ninho com canela no topo das copas das árvores.  A todas estas aves mitológicas foi atribuído o poder de se incendiarem e renascerem das suas próprias cinzas.


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Dragão - Criaturas Míticas


"Talvez todos os dragões das nossas vidas  sejam  princesas que esperam ver-nos belos e corajosos. Talvez todas as coisas não sejam senão coisas sem apoio que esperam que as socorramos." 

R.M.Rilke (carta a um jovem poeta)


Ano do Dragão 



O Museu Americano de História Natural, organizou, há alguns anos,  uma exposição inusitada para um dos museus mais proeminentes do mundo. A temática foram os dragões e outras criaturas do universo fantástico: Criaturas Míticas: Dragões, Unicórnios e Sereias.  O seu objectivo não foi demonstrar que essas criaturas são, afinal, reais, mas chamar a atenção para a forma como os mitos e os arquétipos passaram a conviver connosco, para darmos sentido às coisas que não entendemos.

Dragão Azul - Símbolo do poder imperial /  Dinastia  Qin iniciada com o imperador QinShi Huang

 “É uma coisa que atravessa o tempo e as culturas. Estas criaturas nascem da imaginação dos povos como forma de explicar e dar sentido aos fenómenos e às maravilhas do universo natural, que assombram, parecem estranhas e confusas e são muitas vezes difíceis de interpretar ou explicar.”- Ellen Futter, Presidente do Museu.

A China antiga reverenciava quatro animais mágicos, benevolentes e espirituais: a Tartaruga, o Unicórnio,   a Fénix e o Dragão. 


De todos os animais mágicos reverenciados pela China antiga, O Dragão é possivelmente a criatura mítica mais popular. É descrito como um enorme réptil voador, feroz e indomável, que encarna,  em múltiplas culturas,  as forças elementares  da dualidade ,  tanto o  caos como a  ordem que integram o cosmos.


O Dragão é o Mestre do poder primordial: Fogo, Água, Terra e Ar, os quatro elementos que constituem a matéria. Como um Totem, é guardião dos  espaços infinitos e guia da consciência humana que rege os atos. 



A simbologia do Dragão, que emerge com sentidos opostos, representa o paradoxo  da própria condição humana – a  evidência da presença dos opostos: a luz e as sombras, o feminino e o masculino, a criação e a destruição.  



Mas, mais do que qualquer outro símbolo, o Dragão também personifica a força integradora, unificadora, desta dualidade. Em si mesmo não é nem mau ou bom, simboliza a energia que está na origem do mundo material, sendo o livre-arbítrio sempre o comandante das acções que podem contribuir para a ordem  ou para  o caos universais.



Cuspindo fogo, com as suas asas de pássaro e as suas escamas de peixe, também portador de equilíbrio e conhecedor dos mistérios da magia, podendo penetrar os altos planos do universo e os seus insondáveis abismos, personifica e unifica os quatro elementos do mundo antigo numa condensação capaz, tanto de nos exaltar a imaginação como de nos inquietar os sonhos.  

O seu arquétipo incentiva  ao contacto com a nossa natureza psíquica e com a lente capaz de descobrir e ver o maravilhoso. No campo da psicologia, Carl Gustav Yung trouxe o arquétipo do  dragão  para simbolizar o universo das emoções profundas  e o inconsciente. Para Yung e seus seguidores, é a  representação de algo que permite o encontro do self  com o supremo tesouro da sabedoria  do espírito.



No oriente, a simbologia desta criatura mítica sempre esteve associada aos aspectos positivos da energia primordial. O Dragão representa a união dos elementos ao serviço de um propósito benéfico. Unindo a água, na simbologia da serpente, ao ar, à  ave com as suas asas e à respiração essencial à vida,  o dragão representa a aspiração à unidade da matéria e do espírito. Contudo, na Era Cristã, tendo a serpente sido relegada ao papel simbólico da tentação,  o dragão passou a ser associado ao caos, a uma crua e bruta força destrutiva, o mal associado ao mundo da matéria. 
Aparece por vezes personificando a pureza a ser arrastada para o mundo das sombras.

 Ilustração dos soldados de Alexandre, o Grande, contra o terrível dragão.   Miniatura de manuscrito medieval .
Caracterologia do Dragão no universo  do maravilhoso e do fantástico.
Na Literatura Fantástica os Dragões aparecem desde o início como guardiões de tesouros, transmissores do conhecimento, soberanos nos mistérios da magia. Vem possivelmente da oralidade a crença em que eram mediadores entre deuses e homens, sendo autorizados a falar diretamente com os deuses. São muitas vezes representados prendendo nas garras uma grande pérola mágica, como um ovo, com o poder de multiplicar tudo o que toca. O ovo é também símbolo da Grande Sabedoria





Sobretudo, o Dragão aparece no universo literário do maravilhoso e do fantástico, como um amante da liberdade e da aventura, denota energia e coragem, oferendo forte proteção, não só em atitude, como agente no desmontar da trama, quando invocado. É especialmente protetor dos inocentes e rezam lendas que traz a segurança a todos os que guardam o seu ovo.




Fada.  Universo fantástico celta.
Os Dragões são, por norma,  na literatura ou até mesmo em qualquer outra expressão artística evocativa do universo fantástico, extremamente independentes e também muito criativos; frequentemente revelam-se sonhadores e estão invariavelmente destinados a grandes feitos que culminam em estrondoso sucesso. Quando o Dragão se predispõe a dar corpo aos seus sonhos não há limite para o que poderá vir a ser alcançado, tanto em proveito próprio como para o bem comum.
O Dragão guarda a magia das eras, é a representação última das forças da Mãe Natureza, a maior força divina na Terra, pelo que tem.o poder de penetrar todos os planos por onde se imagina que a alma possa deambular, por isso é descrito muitas vezes como uma criatura com poderes para afastar os maus espíritos e toda a qualidade de almas errantes.


Associados ao Dragão costumam vir também, no fio das lendas ou outras narrativas, a transformação, a sabedoria, longevidade, o infinito e o movimento através do espaço. Dragões podem voar e mudar de pele, renovam-se constantemente, representam o eu sobrenatural e infinito.



Exemplos da simbologia do Dragão:

Gnósticos: “O caminho que passa por todas as coisas”
Alquimia:  “Dragão Alado” os elementos voláteis: Dragão sem asas: os elementos fixos.”
China: “O espírito do caminho.” O que traz consigo a eterna mudança.




Guardião de “A Pérola refulgente”, símbolo da perfeição espiritual. e poderoso amuleto da sorte. Consta de alguns escritos que se trata de uma colossal pérola mágica com o poder de multiplicar tudo aquilo em que toca.  A pérola simbolizava o mais precioso dos tesouros. O conhecimento; 

Com a aculturação do mundo oriental, o Dragão tornou-se, hoje em dia, também a ocidente,  símbolo máximo de boa sorte, abundância, e prosperidade. 



Que o Ano do Dragão traga grande boa sorte ao Planeta Terra e à humanidade
Qual o homem 
que não aspira à liberdade?


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