segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

“Tu n’es plus un sauvage, même si tu n’es pas encore un homme…”



François Truffaut - vale a pena lembrar...

Anunciados ontem,  no Google, a data de nascimento de Truffaut e os oitenta anos passados sobre ela, veio-me à lembrança o filme  "O Quarto Verde", que vi,  há algumas décadas, no Quateto, arrastada no entusiasmo  de alguns colegas de faculdade surpreendentemente bem instruídos  nas lides cinematográficas, especialmente no tocante ao cinema francês. Não me lembrando exactamente  da trama, lembro, porém, que esta "peça" me impressionou e que me deixou desde logo fã do cineasta. Daí para a frente,  toda a sua obra marcaria fortemente a minha juventude. 








De toda a sua cinematografia, L'ENFANT SAUVAGE foi o filme que me seguiu de perto até ao presente, o que me deixou na memória registos indeléveis  de pormenores.



Inspirado num “fait divers”.  Trata-se dum filme emblemático, bem ao estilo do universo de Truffaut. 








                 A descrição dum processo educativo invulgar. Um projecto bastante intimista do cineasta.
1798
Nu, arisco e sem saber falar,  um jovem é encontrado assim na floresta, pelos residentes da aldeia.
É recolhido pelo Dr. Itard, que lhe atribui o nome de Victor,  consagrando-se inteiramente à sua educação. 
Sociabilizar o jovem revela-se uma missão árdua e delicada, marcada por muitos momentos de satisfação...
 e por muitos outros de frustração....

Construída em sucessão de capítulos (“Victor na floresta”, “Victor no instituto de surdos mudos”) a narrativa é ritmada pela voz off do médico a anotar as suas reflexões e conclusões, coisa muito do agrado dos doutos mas que se revela pesada em fracasso na relação com a criança.
O Selvagem de Aveyron é objeto de mal-entendidos, como não podia deixar de sê-lo uma criança criada por sua conta e risco na floresta hostil, posteriormente recolhida por adultos que fazem dele praticamente um fenómeno de feira. Pensou-se que teria sido abandonado por ser idiota, mas depressa vem a servir de protótipo da criança mentalmente retardada justamente devido ao seu abandono. No parecer de alguns,  Victor é um incompreendido, cujas falhas e desvios são agravados pela carência afetiva e estigmatizados pelo olhar alheio.
Esta inversão da causalidade é revelada na primeira meia hora do filme, mostrando desde logo o Dr. Itard na pele do investigador perspicaz, que não tarda em descobrir o mistério deste “animal humano” a quem passados uns meses ele poderá dizer: “Mesmo não sendo ainda propriamente um homem, já não és um selvagem.”

A obra exibe uma lenta mas imparável metamorfose. Truffaut é excelente a mostrar a relação, pedagógica, que rapidamente se tornará também afectiva, desenvolvida entre Victor e o seu educador, através dum jogo de coerção, imitação e interacção no âmago do processo de aprendizagem. A cena em que Vítor se revolta, quando é punido injustamente, é também, aqui,  emblemática.; a “ordem moral”, estando interiorizada pela criança, apontaria para que esta é uma ordem intrínseca ao ser humano.

No plano da forma, as imagens a preto e branco, bem “cativadas” por Néstor Almendros,  contribuem ainda mais para a sobriedade da obra. Quando Vítor é considerado como um animal selvagem que deve ser capturado ainda que para tal tenha que se usar a força,  a fulgurante sequência quase muda de Néstor Almendros, sacudida  de violência impressionante, é inaudita.


O próprio Truffaut encarna  a personagem do Dr  Itard, criando assim um “à beira do abismo” fascinante entre o papel de educador  e o de se dirigir a si mesmo como actor. 
Jean-Pierre Cargol assume com distinção a personagem de "l´enfant sauvage". 

François Truffaut...vale a pena lembrar!

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