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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Como um fruto que paira...


                        
    Um fruto, se for amor, pode ser cegueira ou vinho  e doer amável ou brutalmente... 


....como qualquer coisa cristalizada na boca, emudece na língua; pressente-se no ar como um fruto que paira e que mastigo sem que me reconheça emocionada na sua saliva doce. Porque não te sinto, se és feito de tendões e músculos e vertebralmente constituído, como eu?  Porque pairas na emergência perplexa do meu movimento de cria, porque não vens em forte odor corpóreo? Inutilmente vens como poeira espessa ao meu instante de tendões e músculos e sangue fluido nas veias. Testa, nariz, Fevereiro que assenta em ti como de novo o luar, o meio do meu coração que se dissolve como chuva temporã na janela imaginária dos teus quadris (...)


Texto: Maria Dulce Guerreiro
in "Assombrosamente, os Bichos" / Colecção de textos poéticos distinguidos na I Edição do Prémio de Poesia Manuel Alegre

domingo, 29 de janeiro de 2012

Tempus Fugit (...)


" (...) ressuscitar, se faz história: criar, se faz poesia." Victor Hugo

Desde a não existência do tempo, até ao tempo absoluto.

"O que é o tempo? Eu sei o que é o tempo, se alguém me perguntar, não consigo explicar."  Sto Agostinho 

 Texto: Maria Dulce Guerreiro
in "Hortelã Mastigada no Frio" / Colecção de textos poéticos


O tempo voa sempre para o presente. 
Imagem: Aiming for kafka

...para esta coisa de estar aqui, agora. Se fosse descrever tudo o que vejo e sinto, cada detalhe de cada coisa ao mesmo tempo, condensaria a divina palavra no  gargalo estreito da experiência humana.  No  presente,  passado e futuro, tocaria o mundo na afinação do encontro entre o mundo visto por mim há um instante, o passado que inspirou a sua existência e o seu futuro no esquecimento 

do meu olhar.


Eis o presente.
Imagem: Marta Cobos


Diante dos espelhos coloco a face e a espinal medula. Sou infinita no reflexo do reflexo do reflexo, interminável neste presente continuado, na cruel ousadia dos  espelhos que  me devolvem ao lugar intangível de mim, esse mistério onde todos os outros habitam. Múltipla e uma só no presente desta condição, renascimento entre passado e  futuro, entre duas belas mãos intocáveis, entre duas  ideias voláteis, uma ideia veio expressamente para jantar e partir, a outra veio procurar o amor na   imensidão  quartziana do crânio.

Há no ar uma espécie de rumor  que muda  a sua rota com o vento e eleva o batimento dos pulsos  que hasteiam a hora das aves.. É talvez também  criação do tempo que olha para o céu  com as veias corredias no sistema vascular dos astros. A luz que chega da lua e vem para mostrar  a gravidade da terra, viaja pelo espaço, antiga e cataclísmica, não saberemos se é  duração, uma qualquer oportunidade deve ser agarrada como agarraríamos
a eternidade.



Imagen: Zhangpeng


Tudo parece acontecer tão depressa, o terror, a surpresa, o amor, um dedo que não se mexe para tocar nos cabelos, a mão que se suspende sobre a individualização da idade, o vinho que apetece porque alegra ou dói, o cotovelo que roça o ombro na passagem para sentir a corporalidade da pele, as pernas que seguem em frente, os pés que dançam rumo ao futuro, ou param diante  do passado







Imagem: Dariusz Climczac (Journey)


O mundo em nano segundos
e ainda as lembranças que fazem parecer o passado terrivelmente vivo, terrivelmente presente, o tempo não se reconhece no seu lugar e ausenta-se
da casa 
deixando a criatura humana a vagar no  fio da incerteza das suas memórias.





O obturador,  abre, fecha, fica a tristeza registada na eternidade de um pensamento condensado
sem qualquer utilidade senão a de  brutalmente ter  aniquilado milhares de possibilidades.

Mas se um instante cessa,  outro começa. Na impercetível suspensão.entre uma e outra coisa   somos então a imagem,   sem respiração, parada. Quando as criaturas saem do  torpor das suas inquietantes  dimensões, as cinzas do passado voam para o infinito espaço da atenção em movimento, tudo torna à realidade para que o presente volte à casa com sua esperança de amar os dias em que tudo se mistifica e funde: alegria e dor, amor e ódio, coragem e cobardia, aves que trazem dos campos a liturgia da tarde e cães que atacam os caminhantes com seu uivo de medo ou nostalgia . 

Passam horas e horas pelos minúsculos cristais de quartzo, como diminutos grãos de areia horas vibram nos pulsos, desta diminuta vibração se fazem cicatrizes pendulares, dias
completos. 
Cada passagem do pêndulo, cada estreito caminho de areia, marcam uma noticia breve ou insuportavelmente longa. O coração vem com seus batimentos regulares representar o mundo que habita para além do relógio, esse mundo que gira à velocidade do homem livre  ou do homem fechado na sua amargura. Gota a gota, um só instante basta, para largar da mão a sanidade e enlouquecer.





Imagem: Nate Williams


Está sempre na hora de qualquer coisa. De acordar, de levantar, de almoçar, de andar, de parar,de  beijar o marido, a mulher, de ter desejo, cansaço. Se uns observam acordados, outros sonham.  Quando está na hora de sonhar, ninguém o diz , tudo é silêncio, a casa não saberia dizer que horas são sequer por um ostensivo sinal ou pela simples habilidade de um relógio de incenso




Imagem: Juan Miró
Nas torres das igrejas o tempo passa com os habitantes da cidade pequena e a temperatura do ar sem que ninguém dê pelos mistérios da grande solidão. A terra gira e a sua rotação completa leva 24 horas, percebemos que gira pela posição do sol e das estrelas, o mundo divide-se em fusos horários percorrendo longas distâncias para que a mente seja capaz de imaginar  no breu da sua noite o sol a levantar-se do outro lado.

Se o meio dia desliza  pelas planícies, pelos vales  e montanhas,  a terra enfrenta o sol de lés a lés, com a claridade que proíbe o medo. Onde quer que se encontre alguma sombra, aí, estará  também a luz. e o que nela se organiza. As semanas, os meses, os anos, os séculos, os milénios,  os dias tomam para si nomes de deuses, anjos e astros, em sete dias se criou o mundo, em menos se criaram os nomes das coisas, as quatro estações do ano, as quatro fases da lua, a costela de Adão, o seio de Eva, a maçã, o unicórnio.

Da  condição humana sabe-se que tem seu calendário de palavras, sonho e vigília, dúvidas, fé,  e a doce fantasia do amor. 

terça-feira, 31 de março de 2009

Por entre a geometria das coisas da água...

MariaDGuerreiro in Assombrosamente os Bichos...


Entrei no coração dos peixes em viagem, entrei delicadamente no caudal do rio límpido. Ali, por entre a  comovente geometria das coisas da água, vi como éramos na emoção do amor intacto. Guardo em mim a abstracção das coisas concretas: peixes, barro, citrinos, suas impurezas férricas. Há nisto sempre uma forma de sonhos universais tornados respiração; forma de sonhos vulgares que se moldam e conformam à configuração do dia, porções do absoluto que a mente solta das águas e da terra e são coisas inteiras e sem dono; assemelham-se ao princípio do amor, ao medo da perdição no sentido da beleza, no sentido
do seu enigma.


Sei agora que é urgente mover o tempo amovível, escutar o que há de mais silencioso na palavra brutal que cai dos olhos de quem nasce sem ternura ou abrigo.


Tudo
na terra e no céu
é um sentido que passa pelo grande vazio de coisas 
ao abandono.



quinta-feira, 5 de março de 2009

Invadem-me a natureza da madeira, o odor das tintas...


Desconcertam-me as paredes, as portas, as janelas fechadas. 
Sombras 
de uma dor conquistada, que se revelam
sem que o sol desapareça. 


Divisão vertical sobre a terra, poeira 
lameliforme que se lança 
compacta sobre os olhos naturais e belos. Selvagens e burlescas 
são as portas, as paredes, as janelas fechadas. dominós alexandrinos 
tudo escondem
e o que há de mais sublimemente interior não é provado, fica o desejo 
do beijo e a boca 
que morde o nada. 


Em si mesmas, no verão, as paredes são zimbro que arrefece e gela
as rosáceas que emergem dos vitrais; no coração, toda a ternura emancipada, 
urgente
recolhe ao seu alvéolo. 


Ao íntimo dos ossos 
chegam as portas inamovíveis, duram 
na velocidade dos pés que pretendem descalços entrar 
na ternura da terra pronta.


Eu sou um mal menor. As paredes, as portas, as janelas fechadas 
são uma alucinação tricórnia e compacta. Crescem 
entre a giesta e o amor. Despedaçam a cal, sua pureza.


Invadem-me, a natureza da madeira, o odor das tintas, a propriedade 
das barras, a constituição do cimento, o domínio das pedras 
sobre pedras. Doem-me 
a obstinação dos batentes, o temperamento 
das dobradiças, a personalidade das fechaduras, a essência 
dos frisos de argamassa, a taipa. 


Arde-me a pompa dos umbrais. 


As paredes, as portas, as janelas fechadas avançam, rectilíneas, deslizam 
na confusão ingénua dos cabelos, na curva atordoada do pescoço, erguem-se 
na súbita contrição da pele, devoram-me 
o coração e os olhos. 
Não vejo o sol. não vejo o sol. não vejo o sol. 
Não sinto a chuva. tão cedo 
não torno às árvores nem aos frutos nem às aves nem 
à desassossegada intenção do amor.


As paredes, as portas, as janelas fechadas, são uma convenção ignóbil, uma indecência. Que um cão sem nome leve consigo a casa aberta, devore o saibro, a taipa, a cal, o vento que não devolve as coisas
ao seu lugar antigo.


Se os olhos podem ver a sua cor
na pupila luminosa
além do olhar humano, não fique esta vontade desassombrada crescendo, crescendo sobre as densas paredes, sobre as portas, sobre as janelas fechadas. Incerteza